O poder que a música exerce sobre o ser humano não cessa de produzir perplexidade nos filósofos: “ela penetra no íntimo da alma e se apropria dela da maneira mais enérgica”, escreve Platão n’A República (Livro III, 401d). “Por uma irrupção maciça, a música se instala em nossa intimidade e parece elegê-la como domicílio”, comenta Jankélévitch em um dos mais belos livros já escritos sobre o tema: A Música e o Inefável. “O homem habitado e possuído por essa intrusa, o homem extasiado, não é mais ele mesmo: é todo, inteiro, corda vibrante e tubo sonoro, treme delirante sob o arco ou os dedos do instrumentista, e, como Apolo enche o peito da Pítia, assim a poderosa voz do órgão, assim os suaves acentos da harpa tomam posse do ouvinte.” (p. 49)
Perplexos diante do poder musical de pôr os humanos em estado de possessão, de êxtase, de transe, os filósofos costumam vincular a música ao perigoso reinado das emoções e ao domínio devastador do irracional. Em outros termos, a música sempre despertará a desconfiança do filósofo demasiado apegado ao culto da razão, ao logocentrismo e o vício que este muitas vezes implica: a verborréia. O poder da música vincula-se à sua capacidade de nos afetar para além do âmbito do racional e sem precisar de palavras ou conceitos:
“Aquele que não tem a intenção de nos convencer por razões, e sim de nos persuadir por canções, lança mão de uma arte passional de agradar, isto é, de subjugar pela sugestão e de escravizar o ouvinte pelo poder fraudulento e charlatão da melodia, de desestabilizá-lo pelos prestígios da harmonia e pela fascinação dos ritmos. Ele dirige-se, desse modo, não à parte lógica e reta do espírito, mas à existência psicossomática como um todo.” (Vladimir Jankélévitch, p. 50)
De fato, seria insensato tentar explicar pela via da lógica o encanto supra-racional que nos invade ao ouvir, por exemplo, o saxofone de Jess Gillam interpretando a Scaramouche de Darius Milhaud. Para explicar a música, precisamos falar de seu encantamento, de sua capacidade de mobilizar afetos, da expressão do que é indizível e inefável.
Sem precisar de palavras, dispensando o uso da retórica verbal, o artista da música nos envolve com uma teia invisível de encanto sensível, assemelhando-se nisto a uma “mulher que persuade apenas com o perfume de sua presença, isto é, com a exalação mágica de seu ser”, como escreve Jankélévitch.
Por isso “a música obtém que nossa adesão pelo único encanto de um trinado ou de um arpejo” será “objeto de profunda desconfiança”, sobretudo por parte dos filósofos mais idealistas, puritanos e logocêntricos, aqueles que afirmam: “não é digno para um homem dotado de razão deixar-se encantar” (p. 50).
A mitologia já apontava nesta direção: na Odisséia homérica, um dos mais famosos episódios que o sagaz Ulisses encara em sua aventura de retorno a Ítaca consiste em escapar da sedução das Sereias. Ulisses e seus barqueiros sabem que o sedutor canto das Sereias já se tornou a causa de muitos naufrágios e decidem que o melhor é se precaver contra a irresistível música que só os desviará do reto itinerário: cobrindo os ouvidos com cera num expediente de surdez voluntária, os companheiros de viagem de Ulisses procuram manter a tentação longe de seus ouvidos, enquanto o próprio herói prefere, com ouvidos bem abertos, ouvir a pérfida sinfonia das sereias amarrado ao mastro.
Este mito inesquecível e tão repleto de ecos na história da cultura – é só lembrar da poesia de Mikhail Lérmontov sobre a pérfida Tamara ou a divertida paródia realizada na série Desencanto de Matt Groening – demonstra uma ambivalência do herói: ao mesmo tempo que Ulisses conhece o perigo de ser capturado pelo canto, abandona-se à ânsia de ouvi-lo, ainda que imobilizado e incapaz de se lançar na direção das cantoras. É esta ambivalência que também parece marcar a postura de Platão diante dos “encantamentos perigosos” da música que o Estado deve regulamentar, tal como delineado por Sócrates nos diálogos da Politéia (República).
O mito não nega que a música produzida pelas sereias é de uma força tamanha que pode fazer colapsar o auto-controle do herói homérico; é justamente pela irresistibilidade da sedução musical que somos convidados a imitar Ulisses e nos precaver contra encantos musicais que podem nos levar ao naufrágio.
Outro mito muito célebre também tematiza a música e seus encantos: Orfeu, que recebeu a sua lira do próprio deus Apolo, é descrito como um músico magistral, capaz de fazer até mesmo que as feras da floresta cessem sua busca frenética por presas e parem para apreciar as suas melodias. Segundo o orfismo, toda a natureza parece se encantar com Orfeu e sua lira, até as bestas mais ferozes.
Quando sua esposa Eurídice, fugindo de um predador sexual (um sórdido representante da Cultura do Estupro da época), é mordida por uma cobra venenosa e morre, Orfeu descerá ao Hades portando sua lira e conseguirá até mesmo barganhar com o deus dos mortos as condições para o retorno de Eurídice ao mundo dos vivos. Nem mesmo deuses como Hades e Perséfone se sentem capaz de resistir à música órfica!
Segundo Jankélévitch, o mito de Orfeu – que ecoa no poema sinfônico composto por Franz Liszt (1811–1886) – significa que “a verdadeira música humaniza e civiliza. A música não é somente um artifício cativante e capcioso para subjugar sem violência, para capturar cativando, é ainda uma suavidade que suaviza: suave ela mesma, torna mais suaves os que a escutam, pois pacifica em cada um os monstros do instinto e aprisiona as feras da paixão.
(…) Esta é a mensagem de uma civilização órfica, para Lizst, assim como o cocheiro do Fedro de Platão aprisiona o corcel rebelde a fim de torná-lo dócil, Orfeu atrela os leões ao arado para trabalharem as terras incultas e as panteras aos fiacres para levarem a passeio as famílias. (…) Orfeu poderia dizer, como Jesus, domador de outra tempestade: sou manso. O inspirado cantor mítico não doma os monstros cimerianos pelo chicote, porém os persuade pela lira; a arma que lhe é própria não é a clava, mas um instrumento musical… é o mago que humaniza o inumano pela graça harmoniosa e melodiosa da arte…” (Jankélévitch, p. 51-52)
Michelet, em seu A Bíblia da Humanidade, falará do conflito entre a lira (que Apolo concede a Orfeu) e a flauta dionisíaca (o instrumento de Pã e dos sátiros, supostamente conexa às orgias e aos estados de embriaguez extática): “Enquanto a flauta apanha-ratos e enfeitiçadora-de-serpentes é o instrumento suspeito, lânguido, impudico dos portadores de tirso, Orfeu, o antibárbaro, encarna a civilização da lira… Orfeu morre vítima das bacantes trácias: as mênades embriagadas, imagem da fúria das paixões, rasgam-no em pedaços. Inimigo do Deus báquico e flautista, Orfeu saúda a aurora e venera Hélio, o sóbrio e casto deus da luz…” (Jankélévitch, p. 53)
As confluências entre o mito órfico e a poésis musical parecem ser inesgotáveis, a julgar por uma recente safra de produções que reativam o mito de Orfeu e Eurídice de maneira diversa daquela que havia sido feito com o Orfeu Negro, peça de Vinícius de Moraes que Marcel Camus adaptou ao cinema (vencendo uma Palma de Ouro em Cannes). Penso aqui em duas obras-primas da arte contemporânea que reativam um certo “orfismo” – o belíssimo filme de Céline Sciamma, Retrato de Uma Jovem em Chamas, e o Hadestown, originalmente um álbum genial da cantora-compositora folk Anäis Mitchell, transformado em um espetáculo da Broadway…
A música, desde tempos imemoriais, é objeto de controvérsias: seriam seus efeitos benéficos ou maléficos? Ela é mais um veneno, ou mais um remédio? Que tipo ou estilo de música é preferível, qual é execrável? Nestes debates os filósofos também participam, às vezes fazendo-se, a exemplo do platonismo, os detratores incansáveis das músicas mais dionisíacas, orgiásticas, conectadas à busca do êxtase coletivo (fenômeno que Barbara Ehrenreich estudou com maestria ímpar em Dançando Nas Ruas).
Há várias filosofias que manifestam um certo “rancor contra a música”, enxergando em várias manifestações musicais um deletério divertimento que esmacula o sujeito viril de sua razão austera e pintuda. Há um campo de batalha, entre os que idolatram a razão, só dão direito de cidadania ao lógos e desejam silenciar/censurar a música demasiado emocionante/comovente, de um lado, e aqueles que, de outro lado desta trincheira, abrem-se à emoção e à sensorialidade como vias de conhecimento intuitivo, que dão direito de cidadania também ao melos (e não apenas ao logos) e que incentivam e celebram o poder da música de encantar, afetar, transformar pelo afetivo.
Os mitos gregos, perpassados pela música (Ulisses e as sereias, Orfeu e sua lira mágica, a flauta de Pã…), indicam claramente a potência de encantamento da arte sonora e também a similaridade que ela tem com a magia .
De fato, o próprio Jankélévitch afirma que a música assemelha-se mais à magia do que ciência (cf. COMBARIEU, La Musique et la Magie), ou seja, a música apelaria mais a emoções do que a razões: se a ciência é o reino da lógica, da argumentação conceitual, a música em sua magia é o reino da persuasão, do encanto.
Discípulo de Henri Bergson, filósofo francês que dizia existirem dois caminhos para o conhecimento, o conceitual e o intuitivo, Jankélévitch afirma que a música participa mais da via do conhecimento pela via da intuição.Aainda que haja sim algo de muito racional e sistemático na estruturação da linguagem musical, em especial em sua vertente mais apolínea, típica daquela formação de conservatório onde se respeitam paradigmas (ao invés de transgredi-los com desfaçatez dionisíaca)… Talvez, como Nietzsche sugeriu sobre a tragédia, a grandeza de um artista esteja não em tomar partido por um dos lados da trincheira, mas na proeza de conseguir expressar toda a complexidade da luta, toda a extensão desta contradição.
Igor Stravínski, por exemplo, não é um compositor tão imenso, tão repleto de diversidades internas à sua obra, pois soube ser tanto apolíneo quanto dionisíaco? Que obra mais apolínea que o aquela que Apolo Musageta e que obra mais dionisíaca que a Sagração da Primavera?!?
O próprio Nietzsche dizia que o espírito mais criativo é o mais rico em contradições – e sua própria relação com a música esteve repleta destas contradições, a começar por sua Wagnermania que colapsou para ser substituída por uma idolatria por Bizet. Não se trata somente de afirmar o banal: os sujeitos mudam, durante a vida, de “ídolos” musicais, param de ouvir a banda que adoraram na adolescência, passam a adorar a escuta de um artista que antes julgavam insuportável.
No caso de Nietzsche, a música tinha íntima correlação com sua saúde, considerada como um assunto psicosomático (o psíquico e o somático inextricavelmente ligados), ou seja, o filósofo-artista que compôs o poema Assim Falou Zaratustra (depois musicado por R. Strauss) via o “consumo” musical tendo como “juiz” a saúde, já pensava com alguns princípios basilares da musicoterapia – o que botamos ouvido adentro, a invisível sonoridade que escolhemos interiorizar através do influxo sensível, pode sim ter impactos organísmicos que tornam legítima e verdade a afirmação de que a música muda a vida.
“Quanto a Nietzsche, sabe-se que encontrou na música de Georges Bizet um meio de desintoxicação, capaz de restituir ao espírito sua alegria, nitidez e virilidade: não é mais, como Platão, com triviais gimnopédias, mas com saltos coreográficos e em plena luz que Nietzsche começa com sua terapia de depuração, de cura da embriaguez e das ilusões. Sem dúvida, Isaac Albéniz e Darius Milhaud teriam proporcionado, para seu grande despertar, a mais eficaz das catarses.” (Jankélévitch, p. 57)
No instigante capítulo Música e Ontologia, o filósofo questiona as raízes do “rancor puritano contra a música, a perseguição do prazer, o ódio ao deleite e à sedução, a obsessão anti-hedonista”, que levou muitos pensadores, sobretudo na tradição idealista, a rejeitar em massa a maior parte das manifestações artísticas musicais, permitindo apenas uma fração minúscula da música, desde que submetida a uma função moral, como a promoção dos valores da austeridade e da razão controladora dos afetos. “A fim de conferir à música uma função moral, é necessário eliminar tudo que nela há de patético, inebriante e orgíaco, até privar-se da própria embriaguez poética, pois a música nem sempre nos traz a serenidade da sabedoria, mas antes enlouquece e agita seus ouvintes.” (Jankélévitch, p. 57)
Ou seja, para muitos dos inimigos da música, seus detratores por puritanismo ou racionalismo fanático, a música seria reprovável, e deveria ser em muitos casos silenciada, pois não seria responsável por nos tornar mais racionais, prudentes e austeros, mas agitaria nossas emoções e nos colocaria num estado de Vontade arrebatada e exaltada. Ao invés de conduzir à serenidade (ataraxia) ou à moderação (sophrosyne), a música nos agitaria e nos confundiria através de uma tempestade de sons que tornaria nossa subjetividade a vítima de poderes desestabilizadores, que arrebatam a Vontade e obnubilam a Razão.
A própria teoria estética de Schopenhauer afirmava ser a música um acesso privilegiado à Vontade, considerada por este filósofo como a coisa em si. É evidente que Schopenhauer, em ruptura com o logocentrismo, precursor de Freud e mestre do jovem Nietzsche, enxerga na Música uma função que transcende a moral, ou seja, que expressa algo sobre a ontologia, o Ser total, o Tudo que há, que estaria animado por uma Vontade que nada expressa melhor do que a arte musical. Contra aqueles que desprezam a música como fenômeno de superfície, mera perturbação auditiva, Schopenhauer afirma a dignidade ontológica da música como acesso ao númeno da Vontade…
Cético quanto a isso, Jankélévitch questiona o autor de O Mundo Como Vontade e Representação: “Por que, entre todos os sentidos, o ouvido teria esse privilégio de nos proporcionar um acesso à coisa em si e de transcender nossa finitude? Baseado em que monopólio certas percepções, denominadas auditivas, seriam as únicas a desembocar no mundo dos númenos? (…) Em Schopenhauer a música se torna metafísica… Finalmente, o drama psicológico do indivíduo recapitula a odisseia da Vontade propriamente dita… Ninguém mais que Schopenhauer concebeu de modo tão elevado a autonomia da realidade musical.” (p. 61-63)
Por Eduardo Carli de Moraes (2021)
Publicado em: 13/01/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Bom Dia!
Grata surpresa em conhecer A Casa de Vidro, que trás matéria reveladora sobre Música e Filosofia.
Ótimo ensaio! Me deixou com vontade de conhecer a obra do Jankélévitch. Parabéns pelo site!
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Edmundo Alves Gomes Filho
Comentou em 13/01/21